Um Dia em Kara Tepe e as fronteiras do silêncio
- Ronaldo Gillet
- há 5 horas
- 4 min de leitura

Há narrativas que sobrevivem mesmo quando o mundo manda calar. Um Dia em Kara Tepe é uma delas. Escrito e ilustrado pela holandesa Mei-Li Nieuwland, o quadrinho chega ao Brasil pela editora Conrad, dentro do selo HQ Para Todos, que tem como proposta tornar grandes obras mais acessíveis, com edições de qualidade e preços justos. Em 2017, durante uma visita ao campo de refugiados de Kara Tepe, na ilha grega de Lesbos, Mei-Li encontrou um espaço onde câmeras eram proibidas e o cotidiano só podia ser registrado pelos olhos e pela memória. Desenhando o que não podia fotografar, ela transformou o silêncio em narrativa - o retrato de uma jovem síria tentando reconstruir a própria vida entre contêineres, filas e esperas.
A HQ nasce desse silêncio forçado. Nieuwland o molda com delicadeza, transformando a ausência de voz em arte. Cada página é uma tentativa de dar forma ao que a burocracia europeia insiste em apagar. É uma história sobre o que ocorre em um único dia, mas também sobre todos os dias que se repetem no limbo da imigração. Com traços leves e tons suaves de cores, a autora nos faz sentir o peso invisível de quem vive à espera - sem saber até quando.

Lesbos foi, durante anos, a principal porta de entrada de refugiados no continente europeu. Segundo dados do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), mais de 850 mil pessoas chegaram à ilha em 2015, no auge da chamada “crise migratória”. A maioria vinha da Síria, do Afeganistão e do Iraque, fugindo de guerras civis e perseguições. Em 2017, quando Mei-Li esteve lá, o fluxo havia diminuído, mas o drama continuava: cerca de 5 mil pessoas viviam em campos cuja capacidade era inferior a 3.500. No relatório da Anistia Internacional daquele ano, o campo era descrito como “um lugar tomado por uma espera sem horizonte.
Kara Tepe, em especial, abrigava famílias consideradas vulneráveis - mulheres, crianças, pessoas com deficiência. Era o “campo mais humano” de Lesbos, mas ainda assim um espaço de transitoriedade e incerteza. O Relatório de Perfil de Local de março de 2019, publicado pelo Escritório de Migração e Refugiados da Grécia, registrava 1.240 residentes, vindos em sua maioria do Afeganistão (72%), do Iraque (16%) e da Síria (11%). Cada número, na HQ, ganha rosto, gesto, palavra.

Nieuwland observa sem julgar. Sua protagonista - uma menina de olhar firme e fala contida - poderia ser qualquer uma. Ela carrega a casa em lembranças: o cheiro de pão, o barulho de vozes em árabe, a imagem de uma janela. Tudo cabe num caderno. As páginas da HQ alternam entre o desenho documental e o poético: o registro da fila para o almoço, a expressão de quem ouve a notícia de mais uma deportação, o momento em que uma criança brinca com uma garrafa d’água como se fosse brinquedo. O banal se torna símbolo de um período grotesco para centenas de milhares de pessoas.
Há algo profundamente jornalístico em sua abordagem, mas também uma ternura que raramente cabe nas reportagens. A autora se move entre o gesto da cronista e o olhar da artista. E talvez por isso o livro emocione tanto - ele não fala de refugiados no plural, mas de uma pessoa. Uma só. Uma vida que, por um instante, encontramos e não esquecemos.
Em 2024, o cenário europeu continuou marcado pela tensão entre acolhimento e fechamento. De acordo com a Frontex, a agência de fronteiras da União Europeia, cerca de 240 mil pessoas cruzaram irregularmente as fronteiras do bloco - menos de um quarto do número de 2015, mas ainda representando a expressão de uma ferida aberta. A Grécia segue sendo um dos pontos de maior pressão. Lesbos, agora com novos centros “controlados” e cercados por muros metálicos, tornou-se símbolo de uma política de contenção: o asilo como exceção, a espera como regra.
É nesse contexto que Um Dia em Kara Tepe ganha força. Ao escolher desenhar, e não fotografar, Mei-Li Nieuwland produz uma espécie de resistência silenciosa. O traço é sua forma de denúncia. Ela não precisa mostrar ferimentos ou gritos - basta o olhar cansado de uma mãe ou o corpo curvado de um voluntário para dizer tudo. É uma HQ que confia no leitor, que o convida a sentir antes de concluir.
A cada quadro, percebe-se o esforço da autora em devolver humanidade ao que foi reduzido à estatística. O desenho devolve o que o número rouba: a dimensão do vivido. Em Kara Tepe, todos os dias eram o mesmo dia. E talvez seja essa a maior tragédia: o tempo que não anda, a vida que não começa.
A narrativa é curta, mas ecoa como se tivesse sido escrita para durar. Há pausas que lembram a respiração. Há páginas que parecem pedir silêncio. É um quadrinho pra ler devagar, com o mesmo cuidado que se tem ao ouvir alguém contar uma história difícil.
Em meio à dureza dos dados, há milhões de deslocados, milhares de mortos no Mediterrâneo. O quadrinho é um documento para nos lembra que a migração não é só um problema político: é uma experiência humana. E, como tal, precisa ser contada com empatia, sem ruído, sem pressa.
Mei-Li Nieuwland oferece isso: um testemunho em forma de arte. Um gesto de escuta. Um convite para olhar de novo o mapa e perceber que, entre as linhas que separam países, existem vidas que continuam respirando - mesmo quando o mundo parece não ouvir.
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