Absolution: Quando a ficção nem é tão distante da realidade
- Carlos Pedroso
- há 6 minutos
- 3 min de leitura
Absolution abriu um portal na minha cabeça. Depois de ler o quadrinho, fiquei obsessivo por esse universo de reality shows em cenários apocalípticos, onde a barbárie é vendida como entretenimento. O efeito dominó foi imediato: voltei a O Sobrevivente (1987), com Arnold Schwarzenegger, um filme que usa apenas a casca da ideia, mas que se inspira em O Concorrente (The Running Man). No embalo, assisti também à versão de 2025, que, apesar de um final, no mínimo, problemático, funciona melhor do que eu esperava. Não satisfeito, devorei o livro em três dias, provavelmente a leitura mais rápida da minha vida. Tudo isso por causa de Absolution. Mas por quê?

A resposta é simples e incômoda. Absolution merece atenção não apenas pela arte belíssima, nem pelo roteiro afiado e ácido, mas por algo que pouca gente parece comentar: sua crítica frontal ao sensacionalismo e à nossa relação doentia com a violência como produto. A HQ escancara, sem qualquer pudor, o prazer que sentimos em consumir dor alheia e como estamos cada vez mais imersos em um ambiente que não entrega nada, apenas suga tudo. Sim, estou falando das redes sociais.
Tive o “desprazer” no melhor sentido possível ao mergulhar na história de Absolution. E que grata surpresa. Peter Milligan e Mike Deodato Jr. entregam uma HQ que parece cuspir na cara da cultura digital contemporânea, disfarçada de ficção científica ultraviolenta, carregada de sangue, adrenalina e cinismo.

A história se passa em um futuro tão próximo que beira o presente. Nina Ryan, uma ex-assassina profissional, recebe uma “segunda chance”: durante um mês, ela deve eliminar os piores criminosos do planeta. Tudo transmitido ao vivo, para uma audiência histérica que comenta, julga e cancela em tempo real. Se agradar o público, sobrevive. Se não, bombas implantadas em seu cérebro resolvem a questão. Um reality show com pena de morte: alguém realmente acredita que isso não seja apenas o próximo passo lógico da televisão?
A crítica de Absolution é cirúrgica. A HQ expõe o vício contemporâneo por meio de violência encenada, punição pública e a falsa sensação de moralidade que se constrói atrás de telas. Milligan não tem qualquer interesse em poupar o leitor: os seguidores do programa são caricaturas perfeitas da audiência digital carente, histérica, cruel, sempre faminta por mais. A cada página, fica claro que o espetáculo não tem nada a ver com justiça; trata-se apenas de prazer sádico embalado em likes, comentários e engajamento.

A arte de Mike Deodato Jr. potencializa tudo isso com um realismo sujo e brutal, que obriga o leitor a encarar o grotesco de frente, como quem assiste a um vídeo sensacionalista, sabendo que deveria parar, mas simplesmente não consegue desviar o olhar.
Absolution não quer agradar. Quer incomodar e consegue. Mesmo com uma certa pressa narrativa em alguns momentos, que pode comprometer o fôlego da história, a trama se sustenta e resiste ao modismo. Claro, nem tudo são flores: algumas explicações parecem deliberadamente reservadas para um possível segundo volume. E fazem falta. Dá vontade de entender melhor como esse mundo funciona, como o governo se organiza, como as pessoas são escolhidas, quais engrenagens mantêm esse espetáculo funcionando.
Talvez esse seja o maior mérito e também a maior crueldade de Absolution: ela nos entrega um espelho quebrado. E não oferece respostas fáceis. Apenas nos obriga a encarar o reflexo.




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