Não é só nas histórias em quadrinhos e no cinema que os personagens vivem vidas duplas, dividindo-se entre o que anseiam para si e o que lhes é cobrado pela sociedade. A vida do artista brasileiro segue nesse rumo, como o personagem Julius (Terry Crews) do seriado norte americano "Todo mundo odeia o Chris"; o artista precisa ter no mínimo dois empregos, não apenas para sustentar a si mas também para sustentar sua paixão pela arte.
O capitalismo mercantilizou a tudo, inclusive a vida do artista que se tornou um negociante de si mesmo.
Mas, negociar o que? A palavra negócio significa negar ao ócio, ócio que seria o tempo dedicado à contemplação e reflexão indispensáveis à arte. Se time is money, o artista negocia o tempo, vendendo o tempo para comprar tempo.
E é aqui que o artista brasileiro precisa ter um emprego para si e outro para manter a arte. Claude Monet disse que a arte é "um luxo que precisa de mãos descansadas".
Mas aqui a situação é outra, pois o artista nacional produz, desenhando, cantando, atuando, escrevendo, colorindo, editando, catalogando, orçando, divulgando, administrando, vendendo, empacotando, distribuindo e respondendo feedbacks; raramente ou nunca tem espaço para o descanso, longe dos estereótipos boêmios dos cinemas, para sobreviver há sempre uma árdua labuta.
O modo de vida contemporâneo é sisifiano, apregoando o mito meritocrático do sucesso sustentado pelo esforço. Tudo é mercantilizado e desumanizado, coisificado, o que coloca o artista em uma posição não-humana.
Muitas vezes esse artista que não tem mãos descansadas em dia nenhum da semana, não consegue usufruir da arte, passando a ser mero produtor, alienado de sua própria produção.
Analisando o fundamento constitucional da valorização do trabalho e da livre iniciativa, que institui o capitalismo como modelo econômico nacional. Poderíamos nos perguntar o que isso teria a ver com arte e com o artista? O valor do trabalho não é mensurado pelo esforço mas sim pela rentabilidade. Isso explica o desprestígio dado ao trabalho dos estudantes e das donas do lar. Caso o artista não consiga se sustentar financeiramente com a arte produzida em seu negócio, será visto como vagabundo; caso consiga um outro emprego para manter essa produção ela passará a ser vista como hobby. Há então uma desvalorização total da produção artística e uma situação aparentemente sem saída. Paradoxalmente, a solução nos é apresentada com livros de autoajuda, do tipo 5 passos para o sucesso, quase sempre servidos de slogans como Never give up, que lamentavelmente costumam ser seguidos de outro termo estrangeiro o Burnout.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche disse que "temos a arte para não morrermos da realidade", ao passo que o historiador Gombrich disse que "não existe arte, somente artistas".
O artista transformado em negociante foi mercantilizado, e alienado de seu próprio meio, portanto coisificado. Deixou de produzir arte, e passou a gerar mercadorias, gerando assim a sociedade platônica ideal, sem artistas, tecnicista, puramente racional.
A solução para esse paradoxo está na política. Embora vejamos uma tentativa maldosa de tentar dissociar arte e política. Sim, arte e política são assuntos de interesse social, sem arte não suportaríamos a instabilidade do campo de batalha que é a sociedade, que é instável e caótica; e sem política não viabilizaríamos a produção artística, que está cada vez mais sufocada em um cenário de decadência política. Sem romantismo, precisamos que faça-se cumprir a proposta de acesso à cultura, disponibilizando mais espaços voltados para arte e cultura, acesso gratuito à museus, exposições, teatros, etc... Nunca esquecendo da valorização do profissional artístico.
Termino essa pequena reflexão com uma citação de Feuerbach
"nosso tempo, sem dúvida prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... o que é sagrado pra ele, não passa de ilusão... pois a verdade está no profano. Ou seja, a medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado."
Parafraseando Belchior, Espero que essas palavras, assim como faca, rasgue a carne de vocês.
As vezes chega dar raiva de ir em eventos e ver a galera não valorizando o trampo do artista. É sabido que vivemos uma crise social, financeira, de identidade que as vezes extrapola a compreensão das coisas. Ter jornadas duplas, e até tripla desestimula qualquer um que queria viver do seu próprio trabalho. As reflexões devem ser discutidas e pensadas para melhorar a qualidade de vida do artista, de quem consome a arte. Seu texto é mais que necessário para que possamos refletir sobre, o como tratamos nossos artistas.
É de deixar sem palavras esse texto. É triste ver essa desvalorização, a jornada dupla, tripla, a falta de reconhecimento a altura dos esforços. O artista brasileiro não é um super star, ele não produz da casa de veraneio onde vai pra buscar inspiração, a inspiração vem no dia a dia e precisa esperar o expediente encerrar pra iniciar o outro turno, o da arte... que não é meramente um hobby, é toda uma vida de dedicação, estudos, e muito, mas muito trabalho.
Ah, essa arte que não nos paga. Ou será que falta valor e sobram os preços… consumimos arte ou artesanato? A arte existe sem o artista, mas e o artista sem a arte? Sei de nada, mas os pensamentos me rasgaram aqui.