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Foto do escritorisaquesagara

O defunto vivo


Muller cambaleou pra casa, a alma fodida por mais um dia de trampo inútil. A única faísca de vida naquele antro de solidão que ele chamava de lar era a TV, que vomitava um desfile nauseante de desgraça e violência. Ele se jogou no sofá como um trapo velho, enquanto as notícias sangrentas se arrastavam sem fim.

De repente, num golpe absurdo do destino, uma bala perdida da tela o atingiu em cheio no peito. Muller tombou no chão, não tanto pela dor, mas pela bizarrice do que acabara de acontecer.


No dia seguinte, ele acordou, mas não como os vivos despertam. Estava morto, mas a vida ainda conseguia se movimentar. Após refletir um pouco percebeu-se morto, e aquilo era um absurdo fodido demais para a mente dele digerir. Então, decidiu seguir com a rotina, vestindo seu traje de indiferença e se arrastando pro trabalho, um defunto vivo entre os vivos.


Atrás da mesa de escritório, ele empilhava arquivos e se questionava sobre a futilidade daquilo tudo. Mas logo desistia de se importar. Afinal, o que importava pra um cara já morto?


À noite, os amigos o arrastaram pra um bar, onde a pinga rolava livremente como as conversas vazias. Muller bebia em goles generosos, buscando em vão um resquício de vida em sua alma apodrecida. Nem a cachaça, nem as risadas, nem as conversas banais conseguiam preencher o vazio imenso dentro dele.


Voltou para casa com uma mulher do bar, os dois bêbados como cachorros. Ainda mataram meia garrafa de vinho que Muller tinha na geladeira. Tentaram transar, mas nenhum deles estava em condições para isso, Muller por seu estado decrépito e a mulher chapada demais para fazer qualquer coisa. Em um instante ela adormeceu e ele começou a remoer toda aquela insanidade do caralho que estava acontecendo com ele, mas, ao mesmo tempo, tentava não pensar em nada para dormir… o ronco pavoroso da mulher e a mente cheia de dúvidas transformavam segundos em horas e a madrugada vazia e silenciosa numa tortura sem fim.


O despertador tocou, rasgando o silêncio da madrugada, e Muller se viu mais uma vez diante da dura realidade da sua existência. "O pior de tudo", pensou ele, "não é estar morto, é estar morto e ainda ter que ir trabalhar." E assim, ele se levantou, calçou os sapatos, preparou um café e saiu para enfrentar mais um dia.

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1 Comment


Angela Ikeda
Angela Ikeda
May 28

Um brinde (ou uma xícara de café) ao primeiro verme que roeu o corpo frio da rotina do trabalhador brasileiro.

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