top of page

Guerra e Imaginação: Nas Trincheiras da Narrativa Fantástica

  • Foto do escritor: mutanteliterario
    mutanteliterario
  • há 3 horas
  • 4 min de leitura

“A Guerra como metáfora moral é limitada, limitadora e perigosa. Ao reduzir as opções de ação a “uma guerra contra” seja o que for, você divide o mundo em Eu ou Nós (bom) e Ele ou Algo (mau), reduzindo também a complexidade ética e a riqueza moral de nossa vida a Sim/Não, liga/desliga. Isso é pueril, enganoso e degradante.”

(Ursula Le Guin, Feiticeiro de Terramar, p.197)


ree

Li, no início do mês, "Rosazul: Academia de Magia para Garotas", escrito pelo autor de ficção científica e fantasia nacional, Roberto Fideli e publicado pela editora Avec. A obra nos apresenta um mundo fictício onde a magia existe e pessoas com dotes mágicos podem estudar em instituições especializadas. Após formadas, o governo pode recrutar essas pessoas como soldados em conflitos armados.


Entre as várias qualidades da obra, a que mais me chamou atenção foi sua abordagem sobre a guerra.



ree

"Rosazul" é muitas coisas, mas, entre elas, é uma história sobre pessoas e sobre as consequências que elas tiveram de enfrentar por causa da guerra.


Foi minha segunda leitura do autor neste ano, a outra sendo "Nenhum Funeral para os Mortos", da editora Dame Blanche, e, embora as duas obras sejam extremamente diferentes, o modo como ambas tratam a guerra me pareceu bastante similar.



E esse tratamento foi algo que me deixou bastante intrigado.


Em muitas narrativas fantásticas, a guerra é emocionante e as batalhas costumam ser descritas de forma empolgante e heroica – para que torçamos por alguém, nos impressionemos com o combate e sintamos a adrenalina da ação.


É comum acompanharmos protagonistas aniquilando hordas de inimigos de forma indiscriminada — inimigos que não fazem diferença e estão ali apenas para fornecer o momento de triunfo e glória.


E veja bem, não estou dizendo que essas obras são ruins, inferiores ou que não devam ser lidas, apenas aponto como essa perspectiva sobre a guerra dentro das narrativas fantásticas é comum, e como é refrescante ler algo que vai na direção oposta.


Cineasta François Truffaut
Cineasta François Truffaut

Embora eu não concorde plenamente com François Truffaut e sua frase “não existe filme anti-guerra, entendo de onde parte a afirmação e consigo ver como muitos autores, ao escreverem sobre guerra, acabam — ao dar ênfase em certas coisas e negligenciar outras — tornando-a algo atrativo e desejável, direta ou indiretamente.


Em "Rosazul", por exemplo, a guerra é contada exclusivamente pela perspectiva de quem sofre suas consequências, das pessoas convocadas a contragosto e dos civis que nada tinham a ganhar com o conflito.




Não há aqui uma guerra entre vilões e heróis, mas um conflito armado movido pelos interesses das elites das duas nações. Não há mortes heróicas por uma causa maior, e sim mortes tristes e fúteis. Quem morreu estava preso a um conflito do qual poucos se beneficiam, e esses poucos não estavam no campo de batalha.


"Rosazul" é particularmente eficiente em nos fazer sentir desconforto diante da guerra, em parte pelo tempo que Roberto Fideli dedica à elaboração das personagens e suas vidas fora da guerra.


Metade da obra se passa antes de o conflito armado chegar às vias de fato. Durante essa parte, acompanhamos o aumento das tensões entre as nações pela perspectiva das personagens ainda na adolescência.


Vemos essas personagens lidando com questões do cotidiano, se apaixonando, amadurecendo, formando grupos, cultivando rivalidades e amizades. Aprendemos sobre suas famílias, motivações, paixões, seus trejeitos e tudo o que as torna únicas. E, quando finalmente chega o momento da guerra, cada uma delas importa.



ree

Já em "Nenhum Funeral para os Mortos", acompanhamos a vida dos personagens e de seus descendentes décadas depois da guerra, com a narrativa constantemente esfregando em nosso rosto o que esse conflito custou aos envolvidos de forma direta ou indiretamente.


Existem tópicos desconfortáveis sendo discutidos quando se narra a guerra, e é mais fácil ignorá-los e focar nos aspectos mais agradáveis, como heroísmo, glória, camaradagem, honra, etc.


Jogos, filmes, livros e quadrinhos sobre guerra tendem a terminar quando o conflito é resolvido e somos levados a supor que tudo fica bem depois disso, que basta vencer a guerra para que tudo se resolva.


Mas o que aconteceu com a cidade que foi totalmente devastada, onde a maioria das pessoas morreu ou foi brutalmente ferida física ou mentalmente? Sabe aquela cidade que mal aparece na obra, mas pela qual o herói precisa passar em um momento impactante da narrativa?

Roberto Fideli
Roberto Fideli

Não quero afirmar aqui que Roberto Fideli é o único autor que apresenta uma visão crítica da guerra ou que é o melhor — embora eu ache que esteja entre os melhores que li recentemente e, sem dúvida, utilize uma abordagem pouco comum.


Autores como John Scalzi e Brandon Sanderson também levantam reflexões interessantes sobre a guerra. Mas acho impossível negar que, nos trabalhos deles, as batalhas, as guerras e os conflitos são bastante emocionantes.




E não acredito ser o único que, ao lê-los, consegue se imaginar dentro desses cenários de forma positiva ou, no mínimo, empolgante. E isso não é algo ruim, tampouco um acidente — o foco das obras deles é outro.


Esta passagem em "Rosazul" é particularmente interessante para esta reflexão:


Um instante, eventual, sem glória ou honra ou qualquer coisa do tipo, apenas uma grande bola de fogo e depois fumaça e cinzas, que poderia tão facilmente ter acontecido com qualquer outro veículo, com outra bruxa no banco da frente’.” (Roberto Fideli, p.231)


Diferentes de muitas narrativas fantásticas que nos empolgam com suas guerras e batalhas, nas quais o protagonista, por meio de sua força, engenhosidade e inteligência, sempre consegue sobreviver. Histórias de guerra nas quais sobreviver, ou até mesmo vencer, é resultado exclusivo da competência. Se você fizer as escolhas certas e treinar o suficiente, é impossível perder. Quem morre, morre de forma heroica, às vezes é traído, mas sempre a morte tem um propósito maior.


Em "Rosazul" e "Nenhum Funeral para os Mortos", as mortes são fruto do acaso da guerra. Morrer é estar no lugar errado, na hora errada, é pisar em uma mina, é estar sob o ponto onde uma bomba caiu por puro azar. O tiro que o personagem recebe não é necessariamente direcionado a ele especificamente, mas sim na direção em que ele está, buscando atingir qualquer pessoa que use o mesmo uniforme que ele veste.


Roberto Fideli nós faz acompanhar o antes, o durante e o depois da guerra, e cada momento, à sua maneira, reforça como o conflito armado é, acima de tudo, uma tragédia.


Comentários


Aqui a gente fala sobre a cultura pop com bom humor e acidez na medida certa. Trazemos pautas que realmente importam e merecem ser discutidas.

FIQUE LIGADO NASREDES SOCIAIS

Compre pelo link e nos ajude

AMZN_BIG.D-8fb0be81.png

ASSINE

Assine nossa newsletter e fique por dentro de todo conteúdo do site.

Obrigado pelo envio!

© 2023 YELLOW TALK 

bottom of page