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Foto do escritorRonaldo Gillet

Um Inimigo do Povo e o preço da democracia


Escrita em 1882 pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), Um Inimigo do Povo é um texto que desafia o tempo. Mesmo sendo do final do século XIX, a obra captura com precisão os dilemas e as contradições que envolvem a natureza humana em um sistema dito como democrático. Em um período de grandes transformações industriais e sociais, Ibsen apresentou uma crítica afiada às fraquezas da democracia e ao papel do indivíduo que, ao defender o bem comum, pode acabar se isolando e sendo taxado como o vilão por uma sociedade que prefere ignorar verdades incômodas.

A peça permanece atual, pois toca em questões que continuam a assombrar as democracias modernas: a tensão entre o progresso econômico e a ética, a influência da imprensa e a fragilidade das massas diante de discursos populistas. Na adaptação de Javi Rey, lançada pela QS Comics no final de 2023 em uma edição à altura da força de seu texto, a história ganha vida em uma linguagem visual que combina a elegância do traço com uma paleta de cores marcante.

A história do quadrinho segue de perto a trama original, mas com a flexibilidade que a linguagem das HQs permite. O Dr. Thomas Stockmann, personagem central, é um médico que trabalha para garantir a saúde pública de sua cidade. Ele descobre que a água do balneário turístico (A Baleia Feliz) está contaminada e, ao tentar denunciar o risco à população, se vê contra quase todos: desde seu irmão, o prefeito, até os poderosos que dependem do turismo local. Thomas acredita que sua missão é salvar a cidade, onde boa parte da população cede ao discurso dos poderosos - ora por pura alienação, ora pelo medo de perdas econômicas.

O quadrinho, como a peça, não apenas critica o egoísmo inerente à sociedade, mas também destaca o dilema da verdade sendo abafada em prol da estabilidade e do lucro. Ao longo de 148 páginas, o leitor acompanha a jornada de médico que busca curas para além da individualidade, com os dilemas éticos e morais sendo confrontados de forma explícita e provocadora, tornando o enredo não apenas uma história, mas uma carta aberta à falta de senso crítico das grandes massas, com inúmeras camadas que ecoa na contemporaneidade.

Rey é certeiro ao transportar o pensamento de Ibsen para os quadrinhos, apresentando um Dr. Thomas Stockmann que desafia o conformismo social e o medo de represálias ao expor a contaminação nas águas do balneário turístico de uma cidade. Stockmann, ao fazer essa denúncia, espera agir em prol do bem coletivo, mas acaba despertando a ira de poderosos e se tornando um “inimigo do povo” - um título irônico e devastador para alguém que acreditava na sua missão de salvar a cidade de um problema de saúde pública.


O desenrolar da história leva a uma reflexão perturbadora sobre como a democracia pode, paradoxalmente, sufocar o indivíduo que se opõe à vontade da maioria. A figura do irmão de Thomas, Peter Stockmann, prefeito e símbolo do pragmatismo cínico, representa aqueles que, em nome da “estabilidade” e dos “bons negócios”, manipulam a verdade para manter o status quo. A partir da perspectiva da nona arte, Rey potencializa essa tensão com uma narrativa visual impecável, revelando o desgaste moral dos personagens e o peso das escolhas que definem o destino da cidade.

Cabe dizer também que o quadrinho não apenas resgata o enredo da peça, mas amplia seu alcance ao destacar temas que ressoam intensamente nos dias de hoje. Como afirmou o pedagogo e filósofo estadunidense John Dewey (1859-1952), “a democracia deve ser um modo de vida, não apenas uma forma de governo”. Em Um Inimigo do Povo, essa ideia se dilui em uma sociedade que prefere ignorar o perigo em prol do lucro, que abdica do senso crítico em nome de uma falsa harmonia.


A obra virou peça e teve sua versão brasileira

A obra de Rey, fiel à essência do que Henrik Ibsen quis pontuar em seu texto original, nos lembra de que o regime democrático é um projeto contínuo - uma espécie de dragão que precisa ser alimentado diuturnamente -, que exige não apenas leis e instituições, mas uma postura ética e uma disposição atroz de quem deseja (e precisa) questionar o poder em todas as suas esferas.


Livro 'Um Inimigo do Povo', publicado no Brasil

A QS Comics, ao trazer essa adaptação para o público brasileiro, amplia o acesso a uma história que não perdeu relevância com o passar dos séculos. A narrativa, imortalizada em outras mídias (como cinema, teatro, literatura, etc), encontra no quadrinho de Javi Rey um novo formato de expressão, mantendo-se atual, impactante e acessível. Por meio de um mergulho nessa edição brasileira da HQ, o leitor é convidado a se perguntar: o que é mais importante, a verdade ou a estabilidade? E até que ponto a maioria pode decidir o que é moralmente certo?


Para além do entretenimento, Um Inimigo do Povo é uma provocação - um lembrete incômodo, mas necessário, de que a democracia depende de uma cidadania ativa e corajosa. Em tempos onde o poder da narrativa se revela capaz de construir ou destruir reputações, a adaptação ressurge como uma obra imprescindível. E é preciso lembrar: somos todos políticos, e participar desses debates é fundamental. Afinal, a democracia não é apenas o governo da maioria, mas a construção de uma sociedade justa para todos.

Ficha técnica 'Um Inimigo do Povo':


Capa dura

Dimensões: 19,8 x 1.5 x 26,3 cm

148 páginas

Miolo em papel Couchê


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