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Foto do escritorMarcelo Gaudio

Reflexões sobre Star Trek e a diversidade (Parte 1)



Introdução

O tema da Diversidade vem ganhando cada vez mais espaço, a luta contra os preconceitos e a busca pela igualdade de direitos independente da etnia, cor, sexo ou religião. Tais avanços que hoje observamos, parecem tímidos, mas eles são resultado de uma longa trajetória de conflitos e disputas, conquistas e resistências que ocorrem em diferentes esferas de atuação da nossa sociedade.


Este campo de conflito se manifesta também na cultura que consumimos todas as vezes que assistimos a um filme ou lemos um livro, e é a partir desta lente que propomos a pensar esse conceito, em especial sua aplicação em duas séries recentes da franquia Star Trek (ou Jornada nas Estrelas para quem as conhece antes do reposicionamento de marca global): Discovery e Picard.


Os dois programas estão atualmente em exibição e podem ser encontrados nas plataformas de Streaming Paramout + e Amazon Prime, ambas compartilham um mesmo universo ficcional e à sua maneira prestam reverência a programas anteriores de sucesso: Discovery ao programa original da década de 1960; e Picard à Nova Geração, que resgatava o conceito na década de 1980. Na primeira série acompanhamos uma mulher negra como protagonista; enquanto que no segundo programa temos como personagem principal de uma história de ação e ficção científica, um homem idoso na casa dos 80 anos.


Ambas as situações são bastante incomuns, principalmente para produções de alto investimento e que visam amplo retorno financeiro. A esses dois personagens ainda se somam vários outros representando inúmeras minorias sociais, de forma direta ou metafórica. Mas antes de desenvolver essas séries especificamente, vale esclarecer e visitar os programas anteriores a estes que deram início à franquia Star Trek, pois se hoje temos essa diversidade, desde a década de 1960 que esse universo já questionava o que temos por padrão de histórias e personagens.


O que é Star Trek




Criada em 1964 por Gene Roddenberry, a proposta inicialmente era aproveitar o sucesso dos westerns e mesclar com uma temática espacial, uma espécie de Bucky Rogers, mas com pretensões menos bélicas e mais aventureiras. Não à toa ela passou a ser definida pela frase narrada no início de cada episódio, quando ela finalmente começou a ser exibida em 1966:


“O espaço, a fronteira final... Estas são as viagens da nave estelar Enterprise, em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, para pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve!”

Em meio a um mundo dividido entre os blocos capitalistas e os socialistas, essa ficção científica trazia a cooperação ao invés da guerra. Então, muito além de inspirar tecnologias como tablets, kits de avaliação médicas, comunicadores que virariam os celulares “startaks” e os ainda tão desejados teletransportes (que foram criados como recurso narrativo para economizar com cenas de pequenas naves pousando em outros planetas), o texto de Roddenberry já pensava de forma diversa.


Desenvolvido numa época marcada por grandes manifestações, o caldeirão cultural dos movimentos por direitos civis da década de 1960, os episódios tratam sobre autoritarismo, luta de classes, racismo, direitos humanos, religião, feminismo e o papel da tecnologia nas sociedades. Sem declarar abertamente às redes de TV que exibiam o programa, o objetivo do autor era trabalhar uma série de questões progressistas que refletissem a contracultura que crescia nas ruas entre os mais jovens.


“Se não podemos aprender a realmente gostar dessas pequenas diferenças, entre indivíduos da nossa própria espécie, aqui neste planeta, então não merecemos ir para o espaço conhecer toda a diversidade que é quase certa lá fora.”

E assim temos Star Trek como um produto da Indústria da Massa, mas que ao invés de reproduzir cegamente o status quo, encontrávamos na ponte de comando mulheres, negros, asiáticos, russos (lembrando que estamos no meio da guerra fria) dividindo responsabilidades em relação a continuidade da missão fictícia.




Um dos maiores destaques era a comandante Nyota Uhura, interpretada por Nichelle Nichols, passou a ser considerada ainda na época como a pioneira da representatividade afro-americana ao conquistar um espaço que, embora secundário como oficial de comunicações especializado em linguística, criptografia e filologia, estava em igual nível de importância com o restante dos tripulantes da nave. Situação que muitas vezes a própria atriz não tinha total consciência, mas que os próprios líderes dos movimentos civis a incentivaram a continuar.


"Quando me virei, estava olhando para o rosto do Dr. Martin Luther King, caminhando em minha direção com um grande sorriso no rosto", disse ela sobre o líder dos direitos civis, que confessou ser um "Trekkie" e seu maior fã. Quando Nichols informou King que ela estava deixando "Star Trek", ele insistiu inflexivelmente para que ela ficasse.


"Ele disse: 'Você não percebe o quão importante é sua presença, seu personagem? Este não é um papel negro ou feminino. Você tem o primeiro papel não estereotipado na televisão. Você abriu caminho.'"

"Ele acrescentou: 'Aqui estamos marchando, e lá você está projetando para onde estamos indo. Você não pode sair [do show]. Você não entende o que quer dizer?' Eu disse a ele que quando eu entrasse em hiato do show, eu poderia vir e marchar com ele e ele disse: 'Não! Você é uma imagem para nós. Nós olhamos para aquela tela e sabemos para onde estamos indo. ' Era como se ele estivesse dizendo: 'Finalmente livre, finalmente livre!'"

E durante os três anos de programa sua personagem ganhou mais importância, inclusive protagonizando um polêmico (para a época) primeiro beijo inter-racial da TV, que aconteceu com o capitão Kirk na terceira temporada. E embora afirme não ter sofrido racismo no set de filmagem, o mesmo não poderia ser dito de outras partes do estúdio, como dificuldades em acessar certos espaços ou mesmo em relação ao fotógrafo da série:


"Há mais fotos minhas atrás de alguém onde você mal pode me ver, mas eles também tiveram que tirar fotos minhas singularmente."

Infelizmente, ainda que tenha conseguido algumas conquistas, o criador da série ainda sofreu alguns impedimentos dos produtores que não foram possíveis de contornar. Destes, vale mencionar a atriz Majel Barrett que, inicialmente teria um papel de oficial comandante, atuando inclusive no episódio teste, mas dentre as várias mudanças requisitadas para a aprovação da série, Barret acabou se tornando a enfermeira da nave subordinada ao Dr. McCoy.


Ainda assim, esses pequenos exemplos escolhidos em meio a tantos episódios que acabam desenvolvendo diferentes temas como já mencionado, ressaltam a importância da representatividade mesmo numa produção de ficção. Identificamos já na década de 1970 um aumento expressivo na contratação e recrutamento de candidatos de minorias sociais indo trabalhar na NASA no corpo técnico de base ou mesmo como astronautas.


Algo que teve apoio inclusive de Nichelle Nichols que atuou no desenvolvimento de campanhas de recrutamento que resultaram na seleção de cinco mulheres, três homens negros e um asiático, incluindo a primeira astronauta do sexo feminino, Sally Ride; a primeira mulher negra no espaço, Mae Jemison; o primeiro negro no espaço, Guion Bluford; e também Judith Resnik e Ronald McNair.




Desde o início a série sofreu resistência dos produtores e da emissora, as mudanças feita do episódio teste para o piloto da série tentava diminuir o excesso de “liberdades” da história e amenizar o tom científico que era considerado muito complexo para a audiência. E mesmo depois do programa começar a ser exibido, os desafios não diminuíram, pois Roddenberry continuou a luta para evitar o cancelamento pelos três anos de duração.


A emissora nunca acreditou no projeto e a todo momento mudava o horário de exibição, o que contribuiu para derrubar ainda mais o público. Por outro lado, quem assistia a série era engajado muito antes dessa palavra ser tão importante no marketing, milhares de cartas chegavam à NBC comentando sobre a história, muito incentivado pelo próprio criador. Segundo um estudo demográfico da audiência, o público se concentrava principalmente entre universitários e pessoas de maior poder aquisitivo e grau de instrução. Um fato curioso é que Star Trek ajudou na venda de televisores a cores e tinha a maior audiência nesses aparelhos, uma pena que eles quase não existiam na época.


Por fim, a série original foi cancelada no início de 1969, mas graças a um acordo prévio com a Kaiser Broadcasting, o programa começou a ser vendido para outras pequenas emissoras e aos poucos conquistou seu status de cult. Situação que contribuiu para que a série se tornasse uma franquia, primeiro com a animação em 1973, seguido dos filmes a partir de 1979 e o retorno das séries com a Nova Geração em 1987.



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