O que falta para que os robôs façam arte não é um aperfeiçoamento tecnológico, mas um desajuste.
Antes dos seres humanos criarem códigos de linguagens, de viverem em comunidades, de dominarem o fogo, ou até mesmo inventarem a roda... já produziam arte.
A arte esteve presente durante os séculos resignificando épocas, servindo como espelho e crônica de inúmeras sociedades. Fazendo crer que a atividade humana e arte são indissociáveis. Contudo, para além do futuro glorioso advindo da evolução tecnológica, como criam os iluministas.
Vivenciamos a iminência de um cenário distópico mais próximo da "SkyNet" do que desejaríamos; e antes que sejamos exterminados por robôs belicosos, seremos reduzidos à segunda classe, a classe menos racional, à sombra do que fomos.
Adiemos o terror apocalíptico um pouco mais, para podermos abordar a arte, por duas concepções: arte como mentira e como ilusão.
O filósofo grego Platão tinha uma visão bastante crítica a respeito da arte; para ele, a arte seria uma cópia das coisas, o que ele chamou de "mimese". Mimese significa imitação ou representação.
Por exemplo, em uma peça de teatro, a mimese ocorre quando os atores representam personagens e cenas, imitando a forma como as pessoas e os eventos reais se comportam, assim como nos quadrinhos.
Em resumo, para o filósofo a arte é mentirosa, por se tratar de uma cópia, distanciando o apreciador da verdade.
E não foi apenas Platão que comparou arte com a mentira, Pablo Picasso já dizia:
"Arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade."
Será que poderíamos extrair algo de verdadeiro da mentira?
Em oposição a Platão, temos seu discípulo, Aristóteles, que concordava que a arte imitava o mundo real, mas via na mimese duas possibilidades positivas: a pedagógica e a catártica.
Pense em algum filme, quadrinho ou peça teatral que você viu. O que eles têm em comum? Todos contam histórias, servindo-se da mimese. Portanto, são todas mentirosas, do contrário não se chamariam ficção.
E por que gastaríamos de histórias mesmo sabendo que são mentirosas? Bem, a primeira resposta é que em alguns momentos gostamos de ser enganados por pura diversão, por isso pagamos para ver shows de mágica.
A segunda resposta é do próprio Aristóteles que diria que por meio das histórias podemos aprender com as experiências de outras pessoas, ou seja, sem precisar sentir na pele. Além de que as histórias evocam emoções e que essas emoções quando sentidas provocam uma catarse, que seria uma libertação psicológica daquele sentimento, uma superação, purificação.
Voltando à citação de Picasso, quando lemos uma história em quadrinho sobre a segunda guerra mundial, por exemplo, sabemos que ali não se encontram pessoas, figurinos ou armas reais, apenas uma imitação do real. Entretanto, é possível conhecer os motivos que levariam um soldado ao alistamento, os horrores psicológicos e as consequências que a guerra proporcionaram a ele. Tudo isso pode evocar no leitor emoções, emoções que podem levá-lo a um estado catártico.
Voltando um pouco no tempo, cerca de 30.000 anos, encontramos o ser humano fazendo o que hoje chamamos de arte. Por que fariam arte se não existiam museus, redes sociais ou mesmo glamour artístico?
Nesse período o ser humano era caçador. Não havia armamentos nem técnicas de caça sofisticadas, o que o deixava à mercê de paus e pedras. Precisando caçar animais ferozes e enormes, estudiosos conjecturam que a arte desse período era religiosa. Acreditavam aprisionar a alma do animal no desenho realizado, uma espécie de magia que daria domínio do caçador sobre a caça.
Talvez, hoje em pleno século XXI, tomemos essa atitude como ingênua ou ridícula. Todavia, arte está presente da pedra lascada até o século da conquista espacial; basta olharmos em volta quantas pinturas e esculturas religiosas são adoradas? Pessoas falam com essas obras de arte e acreditam serem ouvidas.
Quando exibimos orgulhosamente uma fotografia em nossos Smartphones, dizemos "veja, este é meu filho" ou "esta é minha noiva"; acreditamos estarmos apresentando a pessoa a quem nos referimos, mas o belga René Magritte nos alertaria que imagens não são reais e que não passam de ilusões.
Em sua obra "a traição das imagens" o pintor ilustrou um cachimbo realista, com uma frase embaixo com os dizeres "Isto não é um cachimbo".
O objetivo do artista é provocar o observador, ao levá-lo a reflexão de que ali não se encontra um cachimbo real, e sim a representação de tal objeto.
Explicitada arte como mentira e ilusão, retomemos o terror apocalíptico.
Algumas pessoas consideram arte apenas pelo critério técnico. Muitas vezes vemos alguém comentar, sicrano é artista, pois é capaz de reproduzir qualquer desenho, e ainda consegue ampliar. Se considerarmos isso, as máquinas polaroid ou qualquer impressora doméstica são superartistas, e dariam de dez à zero em qualquer Da Vinci. Porém, não é só de técnica que se faz arte, temos também a criatividade e a expressividade.
Sem divagar muito, é interessante relembrar o mito de Prometeu que roubou o fogo dos deuses e deu aos mortais. Fogo que representa a racionalidade humana, que seria a habilidade fundamental para que sobrevivessemos em um mundo selvagem, visto que dentre todos os animais somos um dos mais frágeis. E ainda que no mito do andrógeno, o ser humano é invejado pelos deuses pela capacidade de amar e de possuir diversos sentimentos.
Com racionalidade e passionalidade o ser humano subjugou todos os outros animais terrestres e marinhos, tornando-se o mais letal dos animais.
No afã de ser um deus criador, o homem usou de sua racionalidade para criar máquinas, a princípio para auxiliá-lo como ferramentas, mas por fim como imagem e semelhança.
Recentemente tivemos contatos com diversos teste de inteligências artificiais capazes não só de reproduzir arte, mas também em certo grau de criá-las. Digo em certo grau por ainda não haver espontânea expressividade. O que não tardará em acontecer, visto testes recentes em que foi possível detectar expressão de sentimentos.
Com grandes poderes vem grandes responsabilidades, nos diria o velho Stan. A história mostra que o ser humano foi dotado de grandes poderes e tudo o que fez e continua a fazer é exterminar espécies que ele considera inferiores e até mesmo o planeta. Justificando ser por conta de sua própria sobrevivência e bem estar, ou como diriam Eddie Vedder e Kurt Cobain.
"Sou o primeiro animal a usar calças... posso matar porque em deus eu acredito"; "Tudo bem comer peixes pois eles não têm sentimentos."
Se os gatos pudessem fazer arte, todos os deuses teriam semelhança com felinos, assim como os deuses dos seres humanos são antropomorfos; Como seriam os deuses robóticos?
Vimos por século que a racionalidade humana, somada a sua vaidade produziu arte ao mesmo tempo que guerras, criou ao mesmo tempo em que destruiu, amou e odiou.
Esse terror apocalíptico de que robôs sejam capaz de se expressar artisticamente, vai muito além da ferida em nossa vaidade. Mas é um medo real, de sabermos que nós, no lugar deles, não faríamos apenas arte. Estamos vislumbrando o próprio espelho.
Mas prossigamos criando deuses à nossa semelhança, quiçá os próximos que criemos nos livrem do fardo de sermos o que somos.
Humanos.
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