Não é segredo que Jeff Lemire possui uma produtividade impressionante na indústria dos quadrinhos, como se ele pudesse escrever uma história por dia. Ele está presente em todos os gêneros: ficção, terror, drama (sua especialidade), super-heróis e até roteiros de séries. É uma verdadeira máquina de criação. No entanto, sua zona de conforto está, sem dúvida, em suas narrativas mais autossuficientes, como "O Soldador Submerso" e "Condado de Essex". É nesses trabalhos que ele realmente se encontra e revela todo seu potencial como um dos melhores escritores de quadrinhos.
"Fishflies" é uma minissérie em sete edições, com uma densidade de páginas além do habitual, cujos primeiros passos foram dados pelo autor como uma forma de estreitar laços com seus fãs. No posfácio da primeira edição, ele explica como usou os rascunhos das primeiras histórias de "Fishflies" para inaugurar sua página no Substack entre 2021 e 2022. A partir disso, ele criou uma de suas melhores histórias até hoje. Embora algumas de suas produções anteriores não tenham sido bem recebidas, devido ao desgaste da fórmula de "problemas familiares", "Fishflies" marca um retorno triunfante. É como se Lemire estivesse escrevendo com a mesma maestria de sempre, mas com um toque a mais, uma nostalgia bem-vinda.
Inspirando-se em sua terra natal (Canadá), Lemire utiliza as infestações comuns de fishflies para criar uma história de metamorfoses e aceitação que poucos conseguiriam abordar com tanta habilidade. Em um desses verões infestados, a trama se desenrola quando um assaltante, baleado e transformado em um fishfly gigante, é acolhido pela pequena Francis “Franny” Fox, que vive em uma fazenda com seu pai alcoólatra e violento. A partir daí, somos levados a uma narrativa de aceitação e ciclos, onde o misticismo revela que tudo o que queremos é ser aceitos por quem somos.
Lemire aborda temas como bullying, violência doméstica e despreparo policial, acertando em cada uma dessas tramas. Fanny, uma jovem solitária que sofre bullying na escola, só deseja ser aceita. Ela encontra no fishfly um amigo, um companheiro, alguém que a aceita como ela é. Afinal, tudo o que ela quer é ser amada e protegida, algo que seu pai não faz. Pelo contrário, ele a agride e a trata como um lixo, exigindo que faça todo o trabalho doméstico. Enquanto isso, a polícia local busca o assaltante que feriu um jovem, sem qualquer pista ou ideia de quem possa ser. A trama se desenvolve lentamente, com Lemire cuidando de explorar bem todos os personagens, mostrando suas fragilidades e forças.
Outro aspecto notável na narrativa de Lemire é a circularidade, algo que observamos na literalidade assim que o mistério começa a ser compreendido. A explicação dos acontecimentos se torna ainda mais complexa quando o autor utiliza flashbacks para revelar o que realmente está por trás dos eventos. Talvez este seja o maior deslize de Lemire, pois o nível de detalhamento faz com que pareçamos apenas espectadores inocentes. Embora isso não diminua o brilho da trama, enfraquece o final, deixando tudo meio que mastigado para o leitor.
Um dos pontos fortes do quadrinho está nos desenhos de Lemire. Confesso que, às vezes, parece que ele desenha os mesmos rostos, mas aqui os traços estão mais maduros, as cores mais vibrantes. Temos uma obra mais coesa do autor. A coloração impecável traz mais vida à história, fazendo com que desejemos mais e mais.
O final de "Fishflies" deixa um gosto de que os ciclos precisam ser quebrados para que a vida possa seguir adiante. Lemire trabalha isso de forma leve, mas carregada de emoções. Tudo o que queremos é ser aceitos por quem somos e ter alguém ao nosso lado que cuide de nós. E Lemire consegue traduzir tudo isso em "Fishflies", que parece um retorno aos bons tempos em que ele reinava no universo dos quadrinhos.
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A figura de inseto chama a atenção nessa relação de problemas humanos... Você acha que existe alguma metáfora específica para o "fishfly"?